NÃO PERCAM - O ÚLTIMO FILME COM O MEU PAI!!!

(originalmente publicado dia 12/12/2006 no blog desativado do UOL)

Data: a partir de 11/dez/2005 às 4h da madrugada,
hora da estréia (apenas para convidados).


Local: Hospital Santa Paula

"O FIM DA VIDA NUMA U.T.I." O filme ainda está em cartaz em um único cinema de São Paulo. O ingresso é grátis. São apenas duas sessões por dia, uma às 11h30 e outra às 17h30, apesar de cada sessão ter apenas 30 minutos.

O filme não é lá essas coisas, na verdade o filme é um lixo, mas vale pelo ator (um grande ator, modéstia à parte).

O diretor, Dr. Fausto, convidou meu pai por um pequeno salário de um marcapasso, para representar o papel do ser humano na sobrevida. Meu pai não atinou logo o que isso representa, mas ele encarou, primeiro com um pequeno papel quase despercebido como figurante em várias
locações ainda por volta de seus 70 anos, mas que com o desenrolar da trama, foi se tornando coadjuvante, secundário e nesse momento, aos 81 anos é sem dúvida, o ator principal num cenário reduzido a uma só locação. Mas o salário foi apenas aquele mesmo: um marcapasso. O restante do pagamento, a própria natureza encarregou-se de oferecer, mas com o aval de Dr. Fausto.

Dr. Fausto é o pseudônimo de uma série de diretores que atendem sob a chancela de Junta Médica no cinema chamado Hospital Santa Paula, à Av. Sto Amaro, em São Paulo.

O filme é caro. Gastaram e ainda gastam bastante dinheiro para manter o filme em cartaz, apesar dos pouquíssimos espectadores. Até meu pai já deixou diversas vezes claro que não quer mais desempenhar este papel, porém o Dr. Fausto sempre ignorou seus pedidos, mantendo-o no papel.

É tanta tecnologia em equipamentos de último tipo para que o filme seja exibido, que eu mesmo chamei de "tecnologia burra" pois a história vai de lugar algum para lugar nenhum. Mas os efeitos especiais são tão bem feitos que até se acredita neles: tudo filmado em 3D, tão perfeito que pode-se até acreditar que é real. De todo modo é melhor acreditar que é falso, pois, fosse real, seria extremamente trágico.

Existe ainda uma vasta equipe de técnicos por trás desses equipamentos, mas com pouquíssima disposição. Ficam mais aguardando um momento de ação, onde possam correr de um lado para outro, aplicando máscaras de oxigênio, trazendo e levando macas, soros, injeções e comprimidos. A rotina da filmagem diária é extremamente entediante para essa equipe, esse negócio de dar
banho, trocar cocô e xixi, escovar dente, dar comprimidos... muito chato. Mas na hora que tocam os alarmes e o Dr. Fausto grita "AÇÃO" prá valer - ahhh, que delícia! enfim, equipamentos, correria, gritos de salvação e dever cumprido.

Agora enfim, no climax das filmagens (a tecnologia de ponta permite assistir quase ao mesmo tempo o que é filmado), conseguiram deformar tanto o ator principal, que aquilo que era meu pai agora se assemelha a um monstrengo com tubos e fios elétricos saindo pela boca, um olhar de um olho só meio aberto, meio fechado, uma respiração acompanhada de bipes ritmados, um
corpo estático e inchado, cheio de hematomas de picadas e feridas, uma pele azulada sob luz artificial, tudo isso acompanhado por um frenesi de passeios da equipe técnica de um lado para outro contando os últimos causos da vida cotidiana e de outras amenidades que não interessam ao espectador horrorizado.

Sim, esqueci de mencionar, trata-se do melhor exemplar de filme de terror que há no circuito. Pior que "Bruxa de Blair" pior que "monstro da serra elétrica", pior que tudo já visto em qualquer cinema.

Quem já assistiu fica tão desconfortado que não sabe se grita, se chora, ou se revolta perante tanta atrocidade à vida humana que deveria ser bem mais digna.

Mas o Dr. Fausto deve estar feliz, contando o dinheiro que seus patrocinadores estão lhe pagando para manter esse filme em cartaz, afinal, todos esses efeitos especiais custam rios de dinheiro que permitem que seus produtores possam morar em ricas casas em Alphaville, como é o caso do produtor principal, Sr. Amil.

O filme não vai passar por muito mais tempo - não com este ator. Devem ser as últimas sessões. Em breve sai de cartaz, mas certamente Dr. Fausto e sua equipe vão encontrar outros atores aptos a assumir este papel nas sequencias infindáveis já roteirizadas e apenas aguardando o
momento certo para começar a rodar.

Nós, isto é, minha mãe, meu irmão e eu, que já assistimos a algumas sessões deste filme ficamos nos perguntando qual a mensagem que querem nos transmitir com essa história, sem saber se há uma justificativa aos olhos da verdade espiritual ou cristã, ou se é mesmo um filme pagão.

De todo modo, tem que haver um moral da história ao final da projeção, e parece que o moral é: "pense bem antes de aceitar um marcapasso ou uma ponte de safena. O prazer de viver um pouco mais pode não ser recompensador."

Mas o mundo é mesmo tecnológico, e muitas vezes a tecnologia é sim, extremamente burra.

Na ficha técnica final, constam agradecimentos:
"ao meu avô paterno, que faleceu no seu sono digno, durante a madrugada"
"ao meu avô materno, que teve um ataque cardíaco fulminante quando reclamou ao telefone que sua revista Veja não havia chegado"
"à Mellanie, que interpreta divinamente Ruby Tuesday dos Stones, como trilha sonora no meu
I-Pod", que meu pai - tão compenetrado em desempenhar bem o seu papel - nem pode ouvir.

Levem lenços. Vocês vão precisar.